Ao ouvir Carlo Ancelotti dizer ‘Ciao’, Amaral teve o pressentimento que a relação com o técnico, então com 37 anos e em início de carreira, não daria certo. O volante revelado pelo Palmeiras estava em alta no Brasil e fez confusão com a palavra em italiano (usada tanto para cumprimentar como para se despedir) e sua sonoridade semelhante ao nosso ‘tchau’ ao chegar ao Parma. fk14
“Ele falava ‘Ciao, Ama!’. Tchau? Mas nem cheguei e tá mandando embora”, disse Amaral à ESPN. Ele, junto a Zé Maria, foi o primeiro brasileiro treinado pelo italiano.
Foi justamente Ancelotti, técnico do Real Madrid há três temporadas (inclusive comanda o time contra o Getafe pela LALIGA, neste sábado (2), às 11h15, com transmissão pela ESPN no Star+), quem pediu a contratação de Amaral no verão europeu de 1996 após vê-lo pela seleção.
“Em 95, teve um jogo entre Brasil e Argentina e fazia 19 anos que o Brasil não ganhava na Argentina. O Ancelotti estava assistindo esse jogo, que eu joguei muito bem. Acabei dando um e pro Donizete fazer o gol [da vitória canarinho por 1 a 0]”, disse Amaral.
“Aí em 96 eu fui para a Olimpíada e quando voltei me ligaram: ‘Você foi vendido’. ‘Como assim eu fui vendido?’. ‘Você foi vendido pra um time da Itália. O seu salário vai ser melhor e você vai ter 15% do seu e’. Eu já tinha ido jogar na Itália, mas para morar é difícil, né? Cheguei, e o Parma tinha um timaço: Buffon, Zola, Dino Baggio, Canavarro, Lillian Thuram, que foi campeão pela França depois, Benarrivo, Guti. Aí o Ancelotti falou pra mim que queria que eu jogasse como eu fiz contra a Argentina, me usando pela meia, pelo lado direito. [Com ajuda de um tradutor,] eu falei: ‘Pô, eu sou volante. Aquilo lá acontece uma vez por ano’”.
Qualquer outro técnico talvez tivesse desistido de trabalhar com o jogador. Não foi o caso de Ancelotti. Ele buscou conversar com Amaral outras vezes. Recorreu a Zé Maria (leia mais abaixo) para ajudá-lo a convencer o amigo que seria interessante para a carreira dele aquela mudança.
“Ele me deu muita confiança. Só que ele esperava muita coisa minha, que não era a minha. Eu era mais um arroz de feijão. Ele queria que eu colocasse um bife, um Strogonoff, uma lasanha. Ele teve muita paciência comigo. Acho que eu que não tive muita paciência porque eu queria jogar de volante. Só que na Itália a tática é totalmente diferente do Brasil. Lá é tipo robô mesmo. Tem que ficar naquele setor, não pode sair. Aqui no Palmeiras eu era um carregador de piano. Ele não me queria como um carregador de piano, e eu acabei ficando só seis meses”, disse.
As tentativas de Ancelotti não se limitavam apenas a conversar. Ele escalou o jogador como queria (foram apenas seis jogos) e mostrava nos treinamentos como fazer, inclusive de forma prática.
“Ele falava da forma como ele batia na bola nos tempos em que foi jogador [Parma, Roma e Milan] e, quando a gente ia para o coletivo, ele participava. No Brasil não é assim. Aqui os treinadores participam quando tem o rachão. Lá, às vezes, ele treinava junto pra mostrar do jeito que tinha que bater na bola. Como eu não tive base, comecei com 18 para 19 anos, ele foi um cara que foi me ensinando a forma de jogar taticamente”, disse Amaral.
O volante também teve outras dificuldades para se adaptar em sua primeira experiência na Europa. Uma delas foi por causa das baixas temperaturas em Parma, que fica mais ao norte do país.
“Teve uma vez lá que ele me convocou para um jogo, e tinha que dar aquela caminhada [no dia da partida], né? Você acorda 10h para fazer aquela caminhada, depois almoçar e jogar. Eu olhei para fora. Tava assim nevando. Falei: ‘Quer saber? Eu não vou sair da cama não. Para caminhar? Não’.”
Amaral acabou indo para o Benfica por empréstimo em janeiro de 1997. Lá teve mais facilidade de se adaptar ao clima, além de não ter dificuldade com o idioma. Conseguiu render como fazia no Palmeiras. Isso chamou a atenção do Parma e de Ancelotti novamente, mas...
“Só que eu coloquei aqui na minha cabeça que eu não queria mais comer macarrão. Só de domingo. Lá se comia macarrão todos os dias. Acabei não aceitando voltar pro Parma e voltei pro Palmeiras. Depois que eu estava com a cabeça tão boa, fui novamente para a Itália, dessa vez para a Fiorentina [em 2000] e tive uma boa experiência por lá”, disse Amaral.
O professor de Zé Maria 40126g
Revelado na Portuguesa, Zé Maria também chamou a atenção de Carlo Ancelotti defendendo a seleção brasileira. Assim, no verão de 1996, foi para a Itália com Amaral –e o argentino Crespo, o terceiro estrangeiro contratado pela equipe para aquela temporada - a pedido do treinador.
A forma como Zé Maria recebeu os ensinamentos de Ancelotti foi bem diferente de Amaral.
“Ele gosta muito de brasileiros, e o modo dele nos recepcionar foi muito bom. O impacto também foi muito bom na minha carreira porque naquele período dificilmente um lateral gostava de defender. A gente tinha essa filosofia [no Brasil] de atacar. Na Itália eu tive que aprender a marcar, a fazer parte de uma linha defensiva, a saber quando atacar, quando defender, dar uma cobertura. Trabalhando com ele, principalmente na parte tática, foi isso que aprendi de imediato”, disse.

No início, a única dificuldade de Zé Maria era conseguir compreender o idioma. Para isso tinha ajuda de do argentino Roberto Sensini, que transmitia tudo em espanhol. Depois aprendeu tão bem que já conseguia falar diretamente com Ancelotti, além de ajudar Amaral.
“O modo dele chegar na gente é muito especial. Acho que um treinador não tem que ser bom só dentro das quatro linhas, saber somente de tática e técnica. Ele tem de saber como conversar com o jogador, e saber os momentos certos para conversar com os jogadores. Ele consegue distinguir muito isso. Quando você está conversando numa mesa sobre assuntos que não são de futebol, ele não faz pesar a figura dele naquele momento. Para ele, é uma descontração, hora de dar risada, se abrir. Ele usa esses momentos para conhecer os jogadores, e o jogador acaba se abrindo porque sente a confiança, sente que do outro lado tem um ser humano”, disse Zé Maria.
O lateral aproveitou tanto aquela oportunidade que ficou no Parma duas temporadas, com títulos. Depois foi para o Perugia, que ava por um momento mais competitivo, além de ter defendido no Brasil Vasco, Palmeiras e Cruzeiro em períodos diferentes. Também jogou pela Inter de Milão.
Aposentado desde 2009, Zé Maria decidiu morar na Itália e há alguns anos trabalha na base do Parma, desde a categoria sub-14 até a sub-20, dando treinos de técnica aos jogadores.
Ancelotti na seleção? 654xf
Apesar de não ser uma notícia oficial, Amaral e Zé Maria já ouviram que Carlo Ancelotti é cotado para assumir a seleção brasileira a partir de junho/julho do ano que vem.
Ambos gostaram da escolha atual da CBF, que contratou Fernando Diniz, do Fluminense. Inclusive, ele inicia no próximo dia 8 sua trajetória na equipe canarinho. O Brasil enfrenta a Bolívia, em Belém, pela primeira rodada da eliminatória da Copa do Mundo de 2026.
Mas Amaral e Zé Maria têm opiniões diferentes sobre um possível futuro com Ancelotti no cargo.
“Todos os times brasileiros, até time de Série B, têm técnico estrangeiro, e quando a gente jogava [nos anos 1990 e 2000] não tinha, entendeu? Deram brecha para eles virem pra cá. O Ancelotti é um treinador que gosta muito de brasileiro. Ele foi feliz em Parma. É feliz no Real Madrid. Foi feliz no Milan, entendeu? Só que eu acho que a gente tem a solução aqui no nosso país. É até falta de respeito a gente falar que ele é o interino. Não! Ele é o Fernando Diniz, ele é o treinador da seleção brasileira, eu considero como se fosse agora [definitivo na] seleção brasileira”, disse Amaral.
“Diniz tem um estilo diferente do Ancelotti. É um treinador um pouco mais ofensivo, que gosta de atacar bastante, com muita posse de bola. O Ancelotti é um treinador que se adapta muito bem a aquilo que ele tem na mão. É só ver o Benzema antes do Ancelotti e depois do Ancelotti. Ele é um jogador completamente diferente. Quando chegou [ao Real], ele tava muito desacreditado, com pouca vontade de jogar futebol e o Carlo deu essa confiança a ele. Tanto é que depois virou capitão, ganhou a Bola de Ouro. Ancelotti ganhou tudo, maior treinador de Champions League, ganhou campeonatos, então acho que é uma filosofia ou mentalidade vencedora do Ancelotti que vai se encontrar com a mentalidade filosofia brasileira que também é vencedora. E, se for confirmado, espero que sim, que esse casamento dê certo”, disse Zé Maria.